segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

O fantástico senhor Abdias

O que haveria de tão fantástico sobre o senhor Abdias? Para qualquer espectador menos atento, aquele senhor calvo de meia idade era apenas mais um senhor calvo de meia idade. Provavelmente, mais um professor ou servidor da Universidade. Nada demais podia se tirar de um primeiro contato visual. A camisa de botões colocada por dentro das calças jeans, os óculos de armação grossa, a pasta de couro na mão eram monótonos demais para chamar atenção na vasta fauna de tipos e cores dos corredores universitários.

Contudo, um espectador mais perspicaz teria notado algo de diferente naquele senhor magro de óculos. Teria visto que os olhos do senhor Abdias tinham uma luz diferente, algo de sinistro, que causava dor e angústia.

Devo confessar que eu não me considerava uma pessoa perspicaz, longe disso. Eu me achava até um pouco obtuso para enigmas e mistérios, mas eu o notei. Era um dia comum, começara da mesma forma que todos os dias de aula: ônibus lotado até a tampa. Após quarenta e cinco minutos de desafios a lei da impenetrabilidade dos corpos, eu chegava ao departamento faltando quinze minutos para a primeira aula. Tempo o suficiente para comer um misto quente com uma Coca gelada na lanchonete da Dona Lindete.

Dona Lindete era uma senhora gorda que tinha um trailler em frente ao Centro de Tecnologia, e que vendia o misto quente mais gostoso e barato de todo o Campus. Eu já estava com metade do sanduíche na boca, quando o vi. No primeiro momento, não o percebi, mas quando ele se aproximou da minha mesa, pude ver seus olhos. Um arrepio varreu as minhas costas, me fazendo contorcer um pouco o corpo. Não entendi nada, o homem apenas passou por mim. Achei que não fosse nada, e terminei o lanche a tempo de assistir a segunda aula.

Na semana seguinte, eu já havia praticamente esquecido do acontecido. Estava no meio da aula de Circuitos Digitais, um pouco sonolento, quando olho pela janela e lá estava o homem em frente ao jardim. Segurava a sua pasta, e sem a menor dúvida, me encarava. Tomei um susto. Quem era esse maluco? Perdi-o de vista por um breve momento, e ele desapareceu.

As aparições do homem se tornaram mais freqüentes, no decorrer das semanas, era difícil o dia que eu não o via uma ou duas vezes, para logo ele sumir. Comecei a tentar conseguir informações com os outros alunos, e funcionários da faculdade, mas aparentemente todos negligenciavam a existência dessa figura tão estranha. As aparições mexiam com o meu estado de espírito, os olhos do homem pareciam me encher de um medo tremendo. Não agüentava mais, e não agüentava principalmente ser o único que conseguia vê-lo.

As provas finais estavam chegando, e eu tinha passado todo o semestre sendo alvo das aparições surpresas do meu sombrio homem da mala. Meus nervos estavam em frangalhos, não tinha mais vontade de ir às aulas e nem de sair. Estava mais magro e pálido, passei a ficar distante dos amigos e da família. Os olhos me atormentavam até nos sonhos, não havia paz. Só me restava uma alternativa: descobrir quem era aquele homem. Ao longo das semanas, tentei em vão me aproximar do homem, mas ele sempre estava distante e quando eu tentava chegar próximo eu o perdia no meio das pessoas ou algo me chamava atenção e dava oportunidade para ele desparecer.

Comecei a vê-lo em outros lugares, fora da Universidade. Ele me perseguia por onde fosse, era uma sombra constante infernizando a minha vida. Cada vez que o via, eu tinha uma espécie de ataque de pânico, meu corpo esfriava, minhas mãos tremiam, a boca ficava seca. O espelho revelava uma fotocópia amassada de mim, não havia me preparado para as provas, não comia direito.

Era uma manhã normal de junho, sol ameno e clima agradável, os estudantes todos tensos com as provas finais, a vida fervilhava no Campus. Eu não havia estudado nada, fazia uma semana que não ia para as aulas. Mas resolvi ir fazer as provas, e lá estava o homem e sua mala. Ao lado do trailler, olhando para mim.

Dias mais tarde, quando me perguntaram como eu fiz aquilo, eu não soube explicar. Fui tudo em uma fração de segundos, eu não podia deixá-lo escapar. Corri, derrubei cadeiras, uma ou outra pessoa, mas o alcancei. As pessoas logo se aproximaram para ver o que acontecia.

Fiquei em sua frente, olhei nos seus terríveis olhos, aqueles olhos que me atormentaram todo o semestre. E disse:

- Quem é você?

O homem um pouco assustado e constrangido respondeu:

- Abdias – e colocou a mão dentro do bolso da mala.

Como um raio, movido pelo mais sincero sentimento de sobrevivência peguei uma caneta esferográfica que estava em cima do balcão do trailler e espetei, com toda a força que tinha, no pescoço do homem.

Na verdade, não me lembro muito mais depois disso. Só do sangue, dos gritos, do gosto de terra, das pessoas em cima de mim, dos socos e chutes, e das sirenes. Acordei algumas horas depois, todo machucado, no hospital. Os alunos tentaram me linchar. Minha mãe chorava do lado do leito perguntando: por quê? E só havia uma coisa para dizer:

- Eram os olhos, eles não me deixavam em paz.

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