quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Admirável mundo novo

- Até que fim! Você deve ser o único cara do planeta que não tem um Zeo – falou enquanto olhava as caixas na vitrine.
- Esse negócio de enfiar o bixo debaixo da pele, e ele se ligar nos meus nervos! Putz, me dá calafrios – disse o homem balançando a cabeça rapidamente.
- Deixa de bobagem! Nem dói. Lá vem a moça – disse apontando para a vendedora que vinha segurando uma pistola de aplicação.
- Bem, seu Moreira. Qual é o melhor lugar para o seu implante? – a vendedora mostrou a pistola reluzente. Outro calafrio passou pela espinha de Moreira, que sorriu um riso nervoso.
- Pode ser nesse braço mesmo, dona – disse o amigo levantando o braço de Moreira.
- Calma aí, deixa eu me preparar antes – respirou fundo – acabe logo com esse sofrimento - falou, virando o rosto para o outro lado.
- Pronto, agora o senhor é o mais novo usuário da rede Zeo – sorriu a vendedora.
Moreira olhou para a marca no braço, passou a mão em cima, deu um suspiro profundo e disse: - Não deu para fugir mesmo, obrigado moça. Eu pago aonde?
Os dois amigos saíram da loja, e foram caminhando pelo shopping. Pessoas apressadas, crianças barulhentas, a multidão se espremia pelos corredores.
-Bem, eu tenho que ir – disse Moreira – a vendedora disse que eu preciso descansar e esperar o implante se conectar ao meu sistema nervoso.
-Cuidado, você não pode fazer nenhum esforço físico ou mental. Tire uns dias de folga – o amigo deu um tapinha em seu braço e partiu.
Moreira desceu as escadas na direção do metrô. Os trens passavam por debaixo do shopping, e levavam para as principais regiões da cidade. Como de costume, a estação estava apinhada de gente e pedintes. Guardas organizavam as filas, e empurravam as pessoas para dentro dos vagões. Em pouco tempo de espera, ele estava na companhia de mais de trezentas pessoas no trem expresso para a região norte.
A viagem foi rápida, embora pouco agradável. Ao descer na estação, Moreira viu os anúncios flutuantes com o slogan da Zeo: “Viva um admirável mundo novo com Zeo”. Os anúncios mostravam as pessoas usando seus implantes para melhorar as atividades diárias, monitorar a saúde, acessar a rede e outras dezenas de coisas. Sorriu, passou a mão novamente pela marca no braço esquerdo e seguiu rumo a seu apartamento.
Em pouco tempo, já estava em casa. Ele sentou e deu um gole na cerveja. O processo de fusão do implante se iniciaria em alguns minutos. Terminou a cerveja e se deitou na cama. Depois de algumas horas, Moreira sentiu o seu corpo queimar, a cabeça zonza. Ele tinha lido várias vezes o manual do usuário Zeo, sabia os sintomas, mas não podia imaginar a sua intensidade. Andou atordoado pelo apartamento, segurando a cabeça com as mãos e gemendo de dor. Em certo momento, sentiu a sua mente apagar. Desmaiou, e sonhou com que estava sendo perseguido por uma vendedora risonha com uma pistola na mão.
Acordou com a boca seca, os olhos doídos e a cabeça doendo. Levantou-se e viu o relógio, tinha dormido por mais de quinze horas seguidas. Foi até a cozinha e procurou por um remédio para a cabeça. Não achou, tomou um para dor de estomago, devia resolver.
-Puta merda, que dor! – pensou.
Tinha perdido um dia de trabalho, mas era por uma boa causa. Foi até a sala, ligou a televisão e se sentou no sofá. As imagens apareceram na tela, mas ele não conseguia ouvir nenhum som. Pegou o controle aumentou o volume, mas ainda não ouvia nada. Desligou a televisão, e ligou novamente. Sem som ainda. Então, ele percebeu e deu um grito. Não escutou. Ele não ouvia mais. Tentou se levantar do sofá, não conseguiu se mexer. As pernas não obedeciam. Quis dar outro grito, mas nenhum músculo se moveu.
Quando os policiais arrombaram a porta, fazia três semanas que Moreira estava sentado no sofá morto. Os vizinhos reclamaram do mau cheiro que vinha do apartamento, e chamaram a polícia.
- Como pode tão jovem? Se ele ao menos tivesse um Zeo, isso não teria acontecido – se lamentou a vizinha da frente, enquanto os paramédicos levavam o corpo.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Por favor, me mate.

Ele a olhava deitada na cama, seus braços e pernas amarrados. Não podia acreditar que ela estivesse ali. Aproximou-se, passou a mão delicadamente pelos fios de cabelo vermelho, era tão linda. Depois de tanto tempo, tanta luta, finalmente, ele conseguiu. Ela era sua, apenas sua.
-Acorde, meu amor – sussurrou em seus ouvidos.
A garota ruiva abriu os olhos, a visão estava turva, mas aos poucos, se estabilizou. Ela tentou se levantar, mas não conseguiu. Um arrepio varreu todo a sua espinha, estava amarrada. Tentou gritar, mas a boca estava tampada, só conseguiu emitir uns grunhidos. Começou a se debater, tentando se livrar das amarras. Os movimentos machucavam seus pulsos e tornozelos. Ela percebeu que estava despida, o que só fez aumentar o seu desespero. Ela começou a se mexer com mais força. Ele continuava a assistir, sabia que o começo seria difícil.
-Dormiu bem, querida? – perguntou com um largo sorriso.
Os olhos da garota quase saltaram fora de órbita, e ela o viu. Um homem calvo vestido de bermuda, camiseta e boné. Ele estava de pé a poucos centímetros de distância, segurando um copo. A ruiva parou de se mexer. Não, ela não conhecia aquele homem, não entendia por que estava ali, só queria sair. As lágrimas desciam pelo seu rosto.
O homem continuou sorrindo, se aproximou mais, e deu um beijo em sua testa. Um sentimento de repulsa e revolta envolveu o espírito da jovem. Ele deu mais um sorriso, e saiu.
Todos os dias de manhã, ele a visitava. Cumpria o mesmo ritual, aplicava uma injeção no braço da garota, e esperava alguns minutos. Quando o remédio fazia efeito, ele tirava as amarras, e a colocava deitada no chão. Limpava a cama, trocava os lençóis, e lhe dava um banho com uma esponja e um balde de água. Aproveitava do seu estado de sonolência para alimentá-la. No final, colocava-a de volta na cama e a amarrava.
À noite, ele voltava. Gostava de ficar em pé olhando para ela. Alguns dias, quando estava mais ousado, acariciava seu rosto e lhe dava um beijo no meio da testa.
Ah, como ele a amava, e como amava cuidar dela. Sentia que a cada novo dia, eles eram mais próximos, mais amigos, mais tudo. Um dia, ele criou coragem. Queria ouvi-la, já fazia tanto tempo que estavam juntos. Estava confiante que ela já teria aprendido a amá-lo e que em pouco tempo poderiam sair daquele quarto juntos.
Ele acordou, preparou-se todo. Vestiu seu único terno, que havia mandado para lavanderia especialmente para essa ocasião. Foi até ao quarto da garota. Fitou-a com um grande sorriso, acariciou seu rosto, e tirou a fita de sua boca.

A garota estava consciente, olhou para o homem de terno. O mesmo homem que, dia após dia, a mantinha presa naquele quarto imundo. Seus olhos se encheram de lágrimas, ela reuniu todas as forças que ainda restavam em seu corpo fraco, e disse:

-Por favor, me mate.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Estação de Monitoramento 39Z2

E ele sonhava com um mundo que não existia mais. Um mundo onde se podia correr pela grama, confraternizar com os amigos, via imagens bonitas de uma vida que não era mais real. O barulho estridente e agudo tomou de conta do sonho. Os rostos felizes das pessoas se desmancharam como que derretidos por ácido. Ele acordou, e o barulho ainda estava lá. Era a sirene de alerta.
O rapaz se levantou do leito, e andou poucos metros até a cadeira de comando da estação. O computador mostrava uma mensagem em letras garrafais que piscavam na tela: “Erro de Comunicação: Módulo de Exploração Z3-D”. Ele digitou alguma coisa no teclado, e o barulho cessou. Mais uma série de comandos digitados rapidamente, e o histórico de eventos das últimas dez horas do Z3-D estava na tela. Era verdade, alguma coisa desativou o pequeno robô, e isso não era nada bom.
-Central, aqui é o operador de manutenção 032A falando da estação de monitoramento 39Z2 – disse o homem olhando para um grande monitor de cristal líquido posicionado acima de sua cadeira.
-Aqui é da Central, pode falar – respondeu a voz metálica que brotava dos alto-falantes.
-Aparentemente, nós perdemos o nosso último módulo de exploração – falou tenso o operador – temo que vocês vão ter que me enviar um novinho em folha.
-Copiado, nós vamos ver o que podemos fazer. Talvez você tenha que esperar alguns dias. Retorno com mais informações depois – falou rapidamente a voz.
-Obrigado, até breve – disse o operador, desligando a chamada através do teclado.
O homem olhou para o relógio posicionado em cima do monitor, ainda faltavam três horas para o início do seu turno. Contudo, sem o módulo de exploração não havia muito que fazer. As estações de monitoramento eram postos avançados de coleta de amostras, os operadores eram os homens que mais próximos ficavam da superfície do planeta, apenas cem metros abaixo do nível da superfície terrestre. Os módulos de exploração tinham a missão de extrair amostras da atmosfera, solo, água e trazê-las para a estação, que fazia as análises prévias e transmitia os resultados para a central. Tudo para fornecer aos cientistas lá em baixo dados que pudessem indicar quando a superfície estaria apta novamente para receber seres humanos.
A parte habitável da estação era um quadrilátero de 25 m², dividido em duas partes. A primeira parte era o dormitório-cozinha, e a segunda parte a sala de controle com todos os computadores. O ambiente foi projetado para acomodar de forma espartana uma única pessoa por no máximo três meses, com todos os suprimentos guardados na própria estação. Havia uma única porta de acesso, que dava para um túnel onde era possível trafegar usando veículos elétricos sobre trilhos, que podia levar pessoas e carga. Os trilhos levavam tanto para a Estação Central quanto para a superfície, onde havia a estação de contenção. Essa estação era responsável por isolar o ambiente hostil da superfície do ambiente livre de contaminação do Submundo. Havia outras estações de contenção espalhadas pelo túnel, para ser preciso uma a cada 50 metros.
O operador sabia de todas essas informações, precisou delas para passar no exame de seleção para o cargo. Não havia muitos empregos bons no Submundo, poucas posições eram remuneradas, e os habitantes eram obrigados a prestar horas e horas de serviço comunitário. Por mais arriscado que fosse trabalhar na estação, e realmente era arriscado, ele sabia que quando voltasse para o Submundo poderia ter uma vida menos sofrida com os créditos que acumulara.
A vida na estação era bastante monótona. Os módulos de exploração eram autônomos e podiam ser acessados remotamente. Após a coleta das amostras os módulos sozinhos desciam os trilhos do túnel de acesso, eram esterilizados nas inúmeras estações de contenção, e se posicionavam na entrada da estação de monitoramento. Cabia ao operador, vestir uma roupa especial e colocar as amostras em pequenos invólucros que seriam mais tarde enviados à Central. Algumas amostras eram testadas na própria estação, e seus dados enviados pela rede. Pura tranqüilidade. Ou pelo menos, era o que operador achava até a semana passada, quando uma tempestade destruiu todos, menos um, dos módulos de exploração.
Tempestades eram comuns na superfície, mas nunca havia dito uma tão intensa quanto esta. Por sorte, as antenas de comunicação ficaram intactas e ainda era possível acessar o último módulo. Não se podia dizer o mesmo, dos sensores e câmeras de solo que foram todos destruídos. Mas isso não era problema do operador, e sim da equipe de manutenção que devia vir em duas semanas.
O operador assistia a um desenho animado, quando uma mensagem da Central foi anunciada pelo computador: “Siga o Protocolo de Recuperação 03P”. O homem arregalou os olhos, passou a mão pelo rosto, e deu um sorriso nervoso. Isso não era nada bom. Segundo o relatório anexo a mensagem, o último módulo perdeu a mobilidade próximo da entrada da última estação de contenção. O dito protocolo era a descrição do procedimento de recuperação do módulo na superfície. Ele teria que subir.
A hecatombe aconteceu fazia dez anos, desde então, os homens viviam em cidades subterrâneas construídas pelo governo. Ao todo, sete cidades foram construídas em todo o território nacional, e são interligadas através de uma rede de comunicação de satélites. Fazia dez anos que ele, o operador, não colocava seus pés naquilo que costumava chamar de lar.
O traje de exploração pesava trinta quilos, e era construído com material que o operador ignorava por completo, mas que rezava que funcionasse para filtrar as impurezas do ar. O traje lhe dava autonomia de duas horas de exploração, tempo suficiente para colocar o módulo Z3-D nos trilhos e voltar para casa. Caso fosse necessário, a estação de contenção serviria como sua base para pernoite.
O veículo sobre trilhos se movia lentamente, mas, em poucos minutos, ele já estava em frente ao portão da última estação. Destravou a porta, e entrou no ambiente que era bem menor do que o da estação de monitoramento. Viu o portão de saída para a superfície, ele conhecia o protocolo e devia segui-lo.
Acionou o sistema de filtragem do traje especial, e entrou na câmara de transição. A porta pela qual passou se fechou automaticamente, e o ar da câmara foi substituído pelo ar tóxico da superfície. Um visor em seu braço direito mostrava que tudo estava indo bem com o traje. Em poucos segundos, a porta a sua frente se abriu e o velho mundo estava lá.
O cenário era de tranqüilidade, a estação fora construída sob uma área desértica. Apenas terra amarelada por onde a vista pudesse alcançar, fazia muito tempo que ele não se encontrava em um lugar tão aberto, tão grande. Olhou para cima, mas não havia sol, apenas nuvens acinzentadas e espessas. Poucos raios solares conseguiam ultrapassar aquela barreira, e a temperatura era de apenas 8° C.
E o módulo estava lá, apenas dez metros de distância da entrada da estação de contenção. O operador se dirigiu lentamente ao local. Aparentemente o módulo parecia intacto, talvez fosse apenas um problema de bateria. Quando o operador tentou acessar o terminal do módulo, ele viu um pequeno lagarto saindo das engrenagens do módulo.
-Impossível, como? – balbuciou espantado.
Como aquele pequeno lagarto poderia viver naquela atmosfera tóxica? E foi ele que danificou o módulo? O operador estava atônito, mas tinha pouco tempo para agir. Capturou a amostra de vida, e colocou-a no recipiente anexo ao traje.
-Isso deve enlouquecer os nerds lá de baixo – riu sozinho.
O operador tentou em vão, colocar o Z3-D para funcionar, mas as engrenagens estavam danificadas e não havia tempo o suficiente para consertá-las ali fora. Então, ele decidiu retornar a estação de contenção, não se sentia bem. Era difícil respirar, a garganta queimava a cada inspiração. Foi quando o alerta do traje tocou, ele estava sendo envenenado. Correu o mais que pode para o portão, mas a sorte não lhe sorriu. Tropeçou em uma pedra, e bateu a cabeça com força no chão.
O traje especial era bastante reforçado na parte exterior, contudo a sua parte interior era feita de material mais simples. Pelo menos foi isso, que o Diretor de Operações repassou para a esposa do operador, enquanto entregava a indenização para a viúva.
-O seu marido, aparentemente, deve ter colocado algum material extremamente tóxico na bolsa que corroeu o traje de exploração por dentro. A equipe de resgate o encontrou a dois metros do portão da estação de contenção, com o traje completamente danificado – falou friamente o Diretor, enquanto segurava a mão trêmula da mulher.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

O recrutamento

-Abram a porta em nome do Exército da Libertação Nacional – bravejou o corpolento soldado enquanto batia fortemente na porta. Os estrondos das batidas ecoaram por toda a sala, o garoto tremeu da cabeça aos pés. Sua mãe chorava baixinho abraçada ao menino. Mais um grito:
-Abram a porta ou iremos colocá-la abaixo – o soldado estava mais exaltado ainda.
A mãe deu um beijo na testa do garoto, e caminhou rapidamente em direção a entrada. A porta foi aberta lentamente, e a mulher pode contemplar a visão de seus pesadelos. Sim, eles vieram para levar o seu filho. Ela sabia que esse dia iria chegar, mas saber é diferente de vivenciá-lo.
O soldado afastou a mulher da entrada, dirigiu-se a criança, e disse:
-Coloque sua mão direita sobre o leitor – disse enquanto agarrava a mão do garoto e a colocava em cima da tela do leitor biométrico. Após dois segundos, o aparelho mostrava todos os dados da pequena biografia de Heitor Castro.
-Caro Senhor Heitor Castro, é com máxima alegria que anunciou que hoje é o seu primeiro dia como recruta do Exército da Libertação Nacional – proclamou exultante o soldado.
O garoto tentou se agarrar a mãe, mas foi arrastado pelos soldados até o ônibus de transporte. A mãe ficou de joelhos chorando no meio da rua, não era a única. Havia vários ônibus do Exército estacionados, cheios de meninos chorões que engrossariam as linhas de defesa no longínquo norte. Ele deu uma última olhada para sua rua, para sua casa. Ao entrar no ônibus, o soldado aplicou uma injeção no seu braço direito, apenas protocolo, todo recruta deve possuir um implante subcutâneo que permite ao Exército rastreá-lo e que libera substâncias químicas durante a batalha. O ardor no braço era menor do que a dor no coração.
Era a lei, todo cidadão do sexo masculino ao completar doze anos de idade devia servir ao Glorioso Exército pelo período mínimo de doze meses. Embora, boa parte ficasse pelo resto de suas curtas vidas. A guerra no norte já durava treze anos, e os generais precisavam de mais forças no front. A população apoiava, qualquer coisa era melhor do que perder a guerra e as fontes de água. Para minimizar a perda dos jovens, o governo apoiava programas de reprodução assistida e dava incentivos financeiros para as mulheres que tivessem vários filhos homens.
O jovem Heitor olhava triste a paisagem da rodovia, pensava em sua mãe, sua casa e tudo aquilo que ficava para trás. Ele já tinha ouvido falar do Exército, do dever, de como era importante defender as reservas das mãos sujas dos estrangeiros.
Ele lembrou tudo isso, enquanto voava pelos ares, jogado por uma explosão. Aterrissou em uma poça de lama. O ouvido zumbia, a lama cobria todo o seu corpo. Atordoado, ele não conseguia ver a posição das tropas inimigas. Era uma emboscada. Aos poucos foi retomando o controle, voltou a ouvir o barulho dos tiros, e das bombas lançadas.
Mais do que nunca desejou não ter entrado naquele maldito ônibus, desejou não ter nascido. -Maldito seja o Glorioso Exército – gritou, mas ninguém o ouviu. Ele se levantou. O projétil atingiu sua nuca, ele não sentiu, não deu tempo...

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

O fantástico senhor Abdias

O que haveria de tão fantástico sobre o senhor Abdias? Para qualquer espectador menos atento, aquele senhor calvo de meia idade era apenas mais um senhor calvo de meia idade. Provavelmente, mais um professor ou servidor da Universidade. Nada demais podia se tirar de um primeiro contato visual. A camisa de botões colocada por dentro das calças jeans, os óculos de armação grossa, a pasta de couro na mão eram monótonos demais para chamar atenção na vasta fauna de tipos e cores dos corredores universitários.

Contudo, um espectador mais perspicaz teria notado algo de diferente naquele senhor magro de óculos. Teria visto que os olhos do senhor Abdias tinham uma luz diferente, algo de sinistro, que causava dor e angústia.

Devo confessar que eu não me considerava uma pessoa perspicaz, longe disso. Eu me achava até um pouco obtuso para enigmas e mistérios, mas eu o notei. Era um dia comum, começara da mesma forma que todos os dias de aula: ônibus lotado até a tampa. Após quarenta e cinco minutos de desafios a lei da impenetrabilidade dos corpos, eu chegava ao departamento faltando quinze minutos para a primeira aula. Tempo o suficiente para comer um misto quente com uma Coca gelada na lanchonete da Dona Lindete.

Dona Lindete era uma senhora gorda que tinha um trailler em frente ao Centro de Tecnologia, e que vendia o misto quente mais gostoso e barato de todo o Campus. Eu já estava com metade do sanduíche na boca, quando o vi. No primeiro momento, não o percebi, mas quando ele se aproximou da minha mesa, pude ver seus olhos. Um arrepio varreu as minhas costas, me fazendo contorcer um pouco o corpo. Não entendi nada, o homem apenas passou por mim. Achei que não fosse nada, e terminei o lanche a tempo de assistir a segunda aula.

Na semana seguinte, eu já havia praticamente esquecido do acontecido. Estava no meio da aula de Circuitos Digitais, um pouco sonolento, quando olho pela janela e lá estava o homem em frente ao jardim. Segurava a sua pasta, e sem a menor dúvida, me encarava. Tomei um susto. Quem era esse maluco? Perdi-o de vista por um breve momento, e ele desapareceu.

As aparições do homem se tornaram mais freqüentes, no decorrer das semanas, era difícil o dia que eu não o via uma ou duas vezes, para logo ele sumir. Comecei a tentar conseguir informações com os outros alunos, e funcionários da faculdade, mas aparentemente todos negligenciavam a existência dessa figura tão estranha. As aparições mexiam com o meu estado de espírito, os olhos do homem pareciam me encher de um medo tremendo. Não agüentava mais, e não agüentava principalmente ser o único que conseguia vê-lo.

As provas finais estavam chegando, e eu tinha passado todo o semestre sendo alvo das aparições surpresas do meu sombrio homem da mala. Meus nervos estavam em frangalhos, não tinha mais vontade de ir às aulas e nem de sair. Estava mais magro e pálido, passei a ficar distante dos amigos e da família. Os olhos me atormentavam até nos sonhos, não havia paz. Só me restava uma alternativa: descobrir quem era aquele homem. Ao longo das semanas, tentei em vão me aproximar do homem, mas ele sempre estava distante e quando eu tentava chegar próximo eu o perdia no meio das pessoas ou algo me chamava atenção e dava oportunidade para ele desparecer.

Comecei a vê-lo em outros lugares, fora da Universidade. Ele me perseguia por onde fosse, era uma sombra constante infernizando a minha vida. Cada vez que o via, eu tinha uma espécie de ataque de pânico, meu corpo esfriava, minhas mãos tremiam, a boca ficava seca. O espelho revelava uma fotocópia amassada de mim, não havia me preparado para as provas, não comia direito.

Era uma manhã normal de junho, sol ameno e clima agradável, os estudantes todos tensos com as provas finais, a vida fervilhava no Campus. Eu não havia estudado nada, fazia uma semana que não ia para as aulas. Mas resolvi ir fazer as provas, e lá estava o homem e sua mala. Ao lado do trailler, olhando para mim.

Dias mais tarde, quando me perguntaram como eu fiz aquilo, eu não soube explicar. Fui tudo em uma fração de segundos, eu não podia deixá-lo escapar. Corri, derrubei cadeiras, uma ou outra pessoa, mas o alcancei. As pessoas logo se aproximaram para ver o que acontecia.

Fiquei em sua frente, olhei nos seus terríveis olhos, aqueles olhos que me atormentaram todo o semestre. E disse:

- Quem é você?

O homem um pouco assustado e constrangido respondeu:

- Abdias – e colocou a mão dentro do bolso da mala.

Como um raio, movido pelo mais sincero sentimento de sobrevivência peguei uma caneta esferográfica que estava em cima do balcão do trailler e espetei, com toda a força que tinha, no pescoço do homem.

Na verdade, não me lembro muito mais depois disso. Só do sangue, dos gritos, do gosto de terra, das pessoas em cima de mim, dos socos e chutes, e das sirenes. Acordei algumas horas depois, todo machucado, no hospital. Os alunos tentaram me linchar. Minha mãe chorava do lado do leito perguntando: por quê? E só havia uma coisa para dizer:

- Eram os olhos, eles não me deixavam em paz.

Começo

Seja bem-vindo, caro amigo. Este blog é um pequeno projeto literário sem grandes pretensões artísticas, apenas uma válvula de escape do ócio cotidiano. Aqui você encontrará textos pequenos que versam sobre o horror, o horror que vem em gotas. Pequenas doses de horror para vocês.....